Despedida

Eu não imaginava que seria tão difícil voltar para casa algum dia. Hoje faz exatamente um ano que eu me despedi pela última vez de você, não posso dizer que as coisas estão mais fáceis, mas que me adaptei à dificuldade de uma vida sem sua presença. Me lembro que naquele dia 29/5/2019, eu mal saberia responder meu próprio nome se alguém me abordasse na rua, minha capacidade de raciocínio foi totalmente sugada pela dor logo pela manhã. Eu havia acordado, colocado o café para ser feito na cafeteira, ligado a torradeira e começava a ouvir as notícias do dia, nada diferente dos demais dias, eu estava com ideias para escrever na tese, e então meu celular tocou, estranhei que o fizesse tão cedo, no entanto atendi por uma questão de curiosidade, quem poderia ser tão cedo, eu primeiramente pensei que fosse um daqueles números que ligam para não dizer nada, contudo, quando atendi, antes que uma palavra sequer fosse falada, eu sabia que era algo ruim, meu coração acelerou, meus olhos se arregalaram e minha respiração ficou um tanto ofegante, ao som do meu nome seguido de "esposo de...", confirmei as informações e esperei que me fosse revelado o que eu não gostaria jamais de ouvir, que você tinha sido atropelada, e estava no hospital. Nem sei como saí de casa naquela manhã, eu sei apenas que saí o mais rápido que pude, me lembro apenas de entrar no hospital, ser recebido por aquele cheiro de álcool que domina os interiores amedrontadores dos hospitais, olhar para o rosto de cada funcionário daquele lugar procurando alguém que pudesse me dizer qualquer coisa ao seu respeito, mas não foi tão rápido assim, fui jogado de uma ala à outra do lugar, até que uma mulher não tão gentil, me informou que você estava ferida gravemente, não sei como poderia, mas senti mais uma vez meu mundo partir, ela falou mais algumas coisas que eu não conseguia mais ouvir, fiquei atordoado demais na parte do "gravemente", me sentei e esperei por sua cirurgia, sozinho, não pensei em nada, nem em ligar para alguém, não tinha nem para quem ligar, naquela maldita cidade onde não conhecíamos praticamente ninguém, ou pelo menos alguém que se importasse o suficiente para me ouvir naquele momento, não adiantaria ligar para nossos pais naquela situação, apenas ficariam aflitos e me deixariam mais perturbado do que já estava, fiquei ali por horas, esperando, chorando, orando. Quando a mesma mulher não gentil veio em minha direção, olhei para ela como alguém que olha para o único raio de sol diante de um dia frio e hostil, ela desviou do meu olhar de esperança, me disse secamente que não saiu como o planejado, o restante da fala dela eu não sei, eu escutei, mas só ouvi o silêncio agudo e cortante que meu ser ecoava dentro de mim, eu soube que tinha te perdido. Eu já havia me deparado com o sentimento de morte, de perder alguém, mas nada se comparava com perder você. Lembro-me que me sentei e fiquei ali apenas assinando o que a mulher me entregava, sem pensar, sem refletir, sem estar ali de fato, eu não sabia domar aquele imenso vazio que ocupou minha mente e coração de uma vez, aos poucos consegui ligar para nossas famílias, que se comprometeram a ir para lá o mais rápido que pudessem para me ajudar, mas isso levaria horas, e enquanto isso, tive que lidar com toda a questão burocrática, não sei mesmo como fiz aquilo, até hoje eu não sei responder, só sei que fiz, num piloto automático que depois de ter feito tudo, deletou minhas memórias. Sei que nossas famílias chegaram, montamos sua despedida, e eu te deixei ali. Prolonguei sentado no carro o tempo, antes de voltar para casa, não conseguia me mover, seu irmão me ajudou dirigindo pra mim, sem falar, sem querer ouvir, só respeitou meu tempo e dor, o que sou grato para sempre a ele, entrar em nossa casa foi a coisa mais difícil que fiz, entrar num lugar que só era lar por sua causa, não me pertencia mais, não poderia mais me abrigar, mas apesar da dor, cortante, que me fez sentir um homem quebrado, eu entrei na casa, eu fiz o que tinha que ser feito, e hoje um ano depois, eu consigo perceber que a pior dor do mundo, é a dor da despedida, não apenas da vida, mas de quem eu era com você. Como a casa desmontada, eu também me desmontei, como os projetos cancelados, sinto que também me cancelei em quase tudo, porque quando um de nós morre, cada um morre um pouquinho também, e hoje eu sei que estou aprendendo novamente o que é viver,a dor ainda está aqui, mas como eu te disse, com uma adaptação que me permite novamente buscar motivos para sorrir, e essa carta não é uma despedida de você, meu amor, porém, da dor, quero me divorciar dela e reaprender a viver, sem a raiva da vida, da morte, sem buscar entender os caminhos misteriosos da existência, quero viver sem a mágoa que me assola por ter perdido o nós. Despeço-me dessa forma para seguir, não sei se em frente, mas seguir.

Comentários

  1. O grande projeto de Deus em nossas vidas. Os nossos planos de amanhã são apenas ,meros planos,se não consumados pelo altíssimo e sua Gradiosa glória, viver em Deus, que nos conforta nas adversidades,que nos capacita ,que nos deu espírito de ousadia para conquistarmos nossas vitórias,segundo a sua vontade !!fé no Pai ...

    ResponderExcluir
  2. A grande certeza e que um dia seremos chamados ! Só não saberemos quando e como,o que nos resta e suportar e aproveitar nossos dias de vida com quem nós nós amamos.

    ResponderExcluir
  3. Lindo e emocionante! A despedida é uma dor inegualavel, porém todos nós passaremos por ela um dia! Grande abraço!

    ResponderExcluir
  4. Sim, do mundo nada se leva, mas é formidável ter uma porção de coisas a que dizer adeus.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Saber o que acha é um prazer,obrigada por sua opinião!