A mulher e o desenhista na areia


Sou uma mulher sem nome. Dessas que a gente sabe que existe, contudo não faz nenhuma diferença na vida de ninguém. Eu sou essa mulher há tempos. Acordo todos os dias bem cedo, cuido da casa, preparo a comida, saio para comprar o que falta na despensa, volto, acordo as crianças, as apronto para a escola, as conduzo pelo caminho de cabeça baixa, não falamos muito, não sinto vontade de falar, talvez eu não saiba o que é ter uma voz. Em casa novamente, me fecho enclausurada em meus pensamentos enquanto pratico minhas atividades artesanais, sou uma mulher solitária. Busco as crianças, enquanto caminho pela rua sou empurrada por aqueles que passam apressadamente por mim, sem que ao menos levantem os olhos em minha direção, acostumei-me a viver sem ser notada, sem presença. Meus filhos são meninos, brincam entre si, mal notam que tenho necessidades de conversar, de partilhar a vida, para eles foi ensinado que sou apenas uma mulher e onde eu vivo mulheres não tem direito à vida, somente à existência. Meu marido retorna pra casa à noite, chega suspirando, como quem diz sem palavras que está exausto, não ouso lhe perguntar nada para não o fazer se sentir incomodado. Sirvo o jantar sem falar nada, pois sei que ele gosta assim e depois dele ter comido, preparo seu banho e o espero na cama, onde terminarei de cumprir minhas obrigações diárias.
No entanto, ocorre que tenho percebido que nos últimos dias quando saio de manhã para comprar mantimentos para a despensa, existe um olhar que me encontra. Mal consigo levantar os olhos para conferir se minha impressão está correta. Todavia, minha relutância dura pouco e acabo por erguer os olhos em busca de quem me repara, encontro-o parado de braços cruzados e um sorriso discreto no rosto; era um homem. Rapidamente abaixo minha cabeça e sigo meu caminho como sempre, antes que minha expressão revele as chamas que percorreram o meu corpo quando confirmei aquele olhar pra mim.
Eu não me lembro da última vez que alguém me olhou nos olhos. Fui ensinada que não se pode olhar alguém nos olhos, não sou digna de tamanha atenção, eu devo ser uma mulher invisível, para que eu seja uma boa mulher.
Sigo meus afazeres cotidianos tentando apagar da minha mente o ocorrido. Embora a imagem dos olhos em mim não seja tão fácil de esquecer.
E assim sigo por um bom tempo, todas as manhãs enquanto caminho pela rua a fim de reabastecer minha despensa, os olhos me seguem, me espreitam, me constrangem. Eu poderia contar ao meu marido, mas ele sempre está cansado demais para que eu o incomode com minhas necessidades e carências. Preciso lidar com isso sozinha. Ademais, confesso que tenho gostado de que alguém me enxergue. É uma sensação mista de vergonha e satisfação. Comecei a me arrumar antes de sair de casa e às vezes passo um pouco de perfume.
Os meses se seguiram, e um dia desses, eu me atrapalhei com um punhado de legumes e deixei tudo cair no chão, enquanto me abaixei para recolhe-los, senti uma presença se aproximar, mais perto, uma sombra se prostrou ao meu lado, e ao levantar minha cabeça, vi que era ele, o dono do olhar.
Fiquei tão desorientada que precisei de auxílio para me levantar. Ele recolheu os legumes caídos e me entregou-os com presteza. Não me disse nada e saiu. Eu fiquei zonza o dia inteiro.
Pensei muito em contar ao meu marido o acontecido, mas ele não voltou para casa naquela noite.
Certo dia, o homem me acompanhou até a escola das crianças sem dizer nada, apenas andando ao meu lado. Foi bom ter alguém que me fizesse companhia, eu realmente gostei.
Dessa vez, eu pensei que não precisava mais contar nada ao meu marido, afinal, eu não o queria incomodar.
E o tempo passou, até que um dia, o homem me dirigiu a palavra, eu não estava acostumada a falar com ninguém, quase não consegui responder, por não saber nem como usar as palavras. Demorei elaborando uma resposta, e respondi. Conversamos. Rimos. Eu não sabia que eu podia rir. E as horas passaram, até que me dei conta de que estava quase na hora do meu marido chegar e eu não estava em casa, corri desesperada para o lar.
Contudo, meu marido não voltou pra casa naquela noite.
Eu repassei cada palavra antes de dormir. Lembrava do olhar dele em mim. Ele me fez sentir uma pessoa viva, com voz. Eu nunca havia experimentado aquilo.
E os encontros se seguiram, e nossas conversas eram tão boas, que percebi que estávamos começando a chamar a atenção das pessoas na rua. Eu sentia os olhares de reprovação em mim. Para quem nunca era vista, comecei a chamar muita atenção em pouco tempo.
Resolvemos nos encontrar num espaço mais escondido, num casebre afastado que pertencia ao homem.
E ele me fez sua mulher. Dormi com ele uma vez e pela primeira vez eu me senti feliz em fazer aquilo. Eu nem sei se é certo sentir alegria nisso, mas eu confesso que com ele eu senti.
E repetimos várias vezes, e eu me sentia amada.
Até que um dia, estávamos no casebre e bateram na porta. Nunca havia acontecido aquilo. O homem se levantou e abriu. Entraram em seguida uma dúzia de homens vestidos como autoridades da lei, e me pegaram na cama, enrolada nos lençóis, foram logo gritando, me empurrando e xingando, dizendo que eu pagaria pelo o que estava fazendo. Atordoada eu me virei para o homem pedindo socorro, mas ele simplesmente se virou e deixou que me levassem para fora, nua, enrolada em lençóis sujos e absolutamente desprotegida. Fui desprezada, enganada. Eu não era amada, o que mais poderia me acontecer?
A caminhada foi curta até o lugar que seria o de minha execução. Eu não sei dizer o que passava em minha mente, tristeza, raiva, decepção, vergonha, medo, tudo isso junto. Meu marido ali me olhava com ódio. Meus filhos com pedras nas mãos. E vozes gritando comigo e sobre mim. Mas no meio daquele emaranhado de vozes e gestos zangados, eu vi um homem de costas, desenhando alguma coisa na areia, sereno em meio aquele caos.
Os homens que me buscaram indagaram com ele, o que deveriam fazer comigo, o que era bem irônico, desde que eles já empunhavam pedras nas mãos para me apedrejar. Perguntavam o que já haviam definido. Minha sentença de morte. Mas aquele homem respondeu a eles que aquele que não tivesse pecado poderia ser o primeiro a me jogar uma pedra. E naquele instante eu me juntei com os olhos fechados, esperando o primeiro golpe contra minha carne. Imaginei que fosse bem na minha cabeça, e que fosse alguém envolvido na minha busca ou mesmo meu marido.
Porém, o golpe não veio. E aos poucos eu fui abrindo meus olhos e notando que um a um, eles foram abandonando o círculo que haviam fechado ao meu redor, e depositando as pedras nos chãos. E por um momento que pareceu a eternidade, eu fiquei ali, parada, com aquele homem de costas pra mim. Só nós dois, eu imaginei que ele espantou os demais, para ele cumprir a sentença sozinho e esperei muda por isso.
Mas o homem da areia, se virou pra mim e perguntou: - Onde estão teus acusadores? Ninguém te condenou? E eu, tremendo respondi: - Ninguém, Senhor. E ele me disse: - Nem tão pouco eu te condeno, vai embora e não peques mais.
E ficou ali de costas quieto. Sem olhar minha nudez, sem me constranger, ele me despediu dessa maneira. Eu custei a ter força nas pernas para me locomover, demorei um tanto para ir embora.
E depois daquele dia eu entendi que aquele homem da areia, Jesus, me deu uma nova chance de recomeçar. Mais do que isso, ele me deu uma voz, um nome.
Ao contrário de todos, Ele quis me ouvir. Ele me viu, como jamais alguém o tinha feito. Ele não me julgou, não me sentenciou, Ele simplesmente me amou. Um amor tão diferente, tão incrível que eu jamais teria condições de descrever. Eu pecadora, errante, perdida em meus desejos e vontades, Ele ali, santo, sem nada a ver com minha sujeira, que sim, eu provoquei com minhas próprias mãos. Mas Ele diferentemente de todos, me amou. Jesus me defendeu. Jesus me acolheu.
Eu não sei quanto a você, mas eu sempre quis isso mais do que tudo. Eu sempre quis uma companhia que me notasse, que me ouvisse, que se interesse por minhas particularidades. Sempre quis alguém para compartilhar a vida. Jesus é essa pessoa. Ele me deu uma nova vida, uma vida compartilhada com Ele.
Sou totalmente devedora à Jesus a vida que hoje tenho. Ele me abraçou ali naquele dia, sem ao menos me tocar, quando Ele me livrou das mãos dos julgadores e moralistas. Eu não merecia ser amada assim, eu fui responsável por tudo o que me aconteceu, mas a responsabilidade pelo pecado, não significa que eu me sinto feliz com isso, ao contrário, eu me sentia devastada. Sentia meu coração doer de humilhação e vergonha. Enquanto dedos e pedras me foram apontados pelos crentes, Jesus me ofereceu uma chance de recomeçar. Ele me ofereceu perdão, restauração, purificação e amor, impressionante amor. Eu não seria capaz de amar assim. Ninguém seria capaz. Mas felizmente, Ele me encontrou ali, naquele lugar que marcaram para ser minha morte, dolorosa, cruel e merecida morte; Ele foi até lá, e sem arma alguma, me livrou e me deu uma nova vida, em sua presença, onde eu aprendi que eu sou uma mulher com voz, com sentimentos e potencialidades que Ele está me ajudando a desenvolver.
E hoje, eu uso a minha voz  para proclamar as benfeitorias que Jesus tem feito em minha vida dia após dia, porque Ele vive e está comigo todos os dias até o fim.



Conto escrito por: Denise Dias

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